Chamada de trabalhos n.º 6 revista TRANSLOCAL | Bibliotecas
Data de abertura: ⋅ Data de encerramento: ⋅
Convite à Publicação
TRANSLOCAL n.º 6 | Bibliotecas
Coordenador convidado:
Martinho Mendes (CIERL/UMa e CEHA-AV/DRABL)
Coordenadora residente:
Ana Salgueiro (CIERL/UMa, CECC/UCP e DRABL)
prazo limite para submissão de propostas: 31.01.2025
A lo largo del tiempo, nuestra memoria va formando una biblioteca dispar, hecha de libros, o de páginas, cuya lectura fue una dicha para nosotros [...]. Deseo que esta biblioteca sea tan diversa como la no saciada curiosidad que me ha inducido, y sigue induciéndome, a la exploración de tantos lenguajes y de tantas literaturas. [...] Un libro es una cosa entre las cosas [...] que pueblan el indiferente universo, hasta que da con su lector, con el hombre destinado a sus símbolos
Jorge Luis Borges, Biblioteca personal, pp.7-8
Julgo que as bibliotecas públicas, depósito de textos tanto virtuais como materiais, são um instrumento essencial para contrariar a solidão. Defendo o seu papel enquanto memória e experiência da sociedade. Diria que, sem bibliotecas públicas, e sem uma compreensão consciente do seu papel, uma sociedade da palavra escrita está condenada ao esquecimento [...]. Adoro bibliotecas públicas e são elas o primeiro lugar que visito sempre que chego a uma cidade que não conheço
Alberto Manguel, (2018), Embalando a minha biblioteca, p.27
Em 2012, a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian e o Museu Calouste Gulbenkian apresentaram a exposição Tarefas infinitas. Quando a arte e o livro se ilimitam, comissariada por Paulo Pires do Vale, curador e ensaísta, cuja reflexão se tem vindo a ocupar dos ilimites do livro (sobretudo, do livro de artista) e, consequentemente, das bibliotecas que com eles se constroem e que, tantas vezes por causa deles, se destroem. No caderno da exposição, Paulo Pires do Vale evoca, não por acaso, a “biblioteca interminável” que Jorge Luis Borges imaginou em 1941, na portuária cidade argentina Mar del Plata, ao escrever o seu conto “La Biblioteca de Babel”. Um conto que, na verdade, relia e reescrevia o arquétipo de biblioteca-mundo que Ptolomeu I decidiu edificar no séc. III a.C, na cidade que Alexandre Magno, anos antes, havia fundado para ser o cosmopolita centro do mundo antigo.
Referimo-nos à biblioteca de Alexandria que durante cerca de três séculos “abrigou quase toda a memória do mundo mediterrânico” e asiático conhecido, um ambicioso projeto só possível porque, como lembra Alberto Manguel, “os reis ptolemaicos decretaram que qualquer livro dentro do seu reino fosse trazido ou copiado e transportado para a biblioteca” e que todos os livros detetados nos “navios que atracavam em Alexandria” fossem “confiscados pelas autoridades portuárias” e igualmente copiados e incorporados na biblioteca da cidade (MANGUEL, 2018:60). Livros que eram ainda manuscritos em pergaminho ou outros suportes anteriores à tecnologia do papel, organizados em rolos ou tabuinha, e, portanto, apresentando formatos bem distintos dos que hoje são mais vulgares nas nossas bibliotecas: livros impressos em papel ou disponíveis em formato digital.
Apesar de se tratar de uma biblioteca histórica, as raras informações documentadas que se conservaram acerca quer da sua fundação e existência, quer da sua ruína contribuíram para a mitificação da Biblioteca de Alexandria, conferindo-lhe uma aura que tem inspirado arquitetos, artistas plásticos, escritores e leitores, instituições e agentes político-administrativos, os quais, a partir dela, criaram novas bibliotecas reais ou imaginárias. Neste último caso, para além da biblioteca imaginada por Borges em 1941, lembremos a que Umberto Eco (outro excecional bibliotecário) recriou ficcionalmente (também em diálogo com a biblioteca de Borges) no seu O nome da rosa, romance que, na verdade, pode ser lido como um ensaio sobre o livro e as bibliotecas.
Umberto Eco, no romance e em outros seus textos, fala-nos de bibliotecas que, como supostamente terá sido a de Alexandria, acolhem textos escritos em qualquer língua ou até em linguagens não exclusivamente verbais e dificilmente legíveis no presente (livros provenientes das mais díspares áreas do saber, dos mais remotos tempos e das mais distantes localidades geográfica e culturais), sendo concebidas e geridas como espaços abertos. Bibliotecas que, por essa sua abertura, poderão colocar em risco a sobrevivência material dos livros que arquivam e têm à sua guarda, mas que, para além de repositórios bibliográficos empenhados em assegurar a manutenção/reprodução do saber antigo, se assumem como verdadeiros centros de germinação e atualização translocal de (novos) conhecimentos. Uma dinâmica que, afinal, pretende dar resposta à interminável curiosidade referida por Borges, tornando, assim, essas bibliotecas instrumentos fundamentais para o crescimento cultural, científico, tecnológico e cívico dos leitores e das suas comunidades. Mas Umberto Eco fala-nos também de um outro tipo de bibliotecas, identificáveis com a da abadia medieval visitada por Guilherme e Adso em O nome da rosa. Em contraponto ao modelo anterior, estas são bibliotecas fechadas sobre si mesmas, geridas por supostos guardiões escolhidos pelos seus proprietários ou por quem detém o poder para lhes conferir essa tarefa e que, seguindo apertados protocolos de acesso aos livros, controlam o que pode ou não ser lido e quem pode ou não a eles aceder. Estas são bibliotecas sobretudo pensadas como espaços de monumentalização de (certos) livros, particularmente entregues à preservação material dos seus acervos (tornados secretos e quase intocáveis), mas que, na verdade, inviabilizam aquela que, para Borges e Eco, é o mais importante fim de um livro e de uma biblioteca: encontrar o seu leitor ou a sua leitora, i.e., ser lido por quem nele encontra o labirinto de respostas e de novas perguntas que alimentam a sua curiosidade acerca do mundo e de outros livros ainda desconhecidos ou até por escrever.
No caderno da exposição Tarefas infinitas que começámos por citar, Paulo Pires do Vale reflete neste mesmo sentido:
Abrir um livro é correr o risco de encontrar o infinito. Ter ao alcance da mão, nos limites da página, o sem-limite [...]. Nesse espaço aberto e branco da página, nas suas dobras, pode surgir o sem princípio, nem fim, nem centro: o Livro infinito. Liberdade que é também desorientação: perdem-se as certezas e as referências habituais; [...]./ Entre as mãos abre-se uma fenda. Uma entrada inesperada que altera a ordem do mundo. Um abismo. Ou uma casa - que oferece um outro modo de hospitalidade [...]. Explosão de palavras, ideias, imaginação, sentidos - que destroem e recriam o horizonte de possibilidades em que nos movemos. E exigem de nós: faz, pensa, vê, sê [...]. Os autores contaminam-se. [...]. As leituras cruzam-se criando novos sentidos [...]. Os livros são perigosos: ateiam-nos fogo. Temíveis; por isso, são atirados ao fogo [...]. A biblioteca interminável de Babel [...] não se limita [...] ao tempo da vida de um indivíduo e são criação comunitária. [...] Vêm de longe e dirigem-se para longe (VALE, 2012: s. pp.)
Assim, pensadas simultaneamente como casas e abismos, onde a sedução pela liberdade e pelo encontro com o desconhecido surge associada ao risco da desorientação caótica e do desencontro com identidades e alteridades, as bibliotecas são, não apenas espaços promotores de translocalidade (com tudo o que de criativo e perigoso existe nas suas dinâmicas), como também espaços de saber-poder, com um relevante papel na redefinição constante das comunidades em que se localizam e que ajudam a construir. Conhecer uma biblioteca (pública ou privada) permite-nos também, como argumenta Geoffrey Robert acerca da biblioteca de Estaline, descobrir segredos, valores, modos de pensar e viver dos seus proprietários, dos seus bibliotecários e da sociedade que habitam e que nela habita.
Não é por acaso que o século XIX (período em que a Europa e a América assistiram à formação das sociedades liberais e à criação/legitimação dos novos Estados-Nação) é considerado, por alguns autores, como o século das bibliotecas. Tendo como referência o caso português, verificamos que esse foi, de facto, o tempo em que, com o fim do Antigo Regime e a extinção das ordens religiosas, Portugal assistiu ao desmantelamento das seculares bibliotecas monásticas, até então de acesso muito restrito, cujos valiosos acervos foram posteriormente transferidos para as novas bibliotecas públicas, generalistas, especializadas ou técnicas. Bibliotecas públicas entre as quais destacamos as primeiras bibliotecas municipais (de que a do Funchal, fundada em janeiro de 1838, é um claro exemplo, sobrevivendo até hoje, como a quarta biblioteca pública portuguesa mais antiga) e em que o regime liberal português investiu significativamente, pensando-as, justamente, como dispositivos de saber-poder.
A este respeito, Maria de Fátima M. M. Pinto sustenta que as bibliotecas públicas e populares do séc. XIX se inscreviam num plano mais alargado de construção de uma nova sociedade orientada pelos valores liberais de Igualdade, Justiça Social e Progresso, para o qual concorriam a alfabetização e a democratização do acesso à cultura e ao saber, que, na época, tinham como pilares fundamentais os jornais e o livro, este último ainda um bem muito dispendioso e a que as camadas sociais menos abastadas apenas conseguiam aceder através da leitura pública. Por outro lado, enquanto dispositivos que salvaguardavam acervos bibliográficos, gerindo o seu acesso e a sua divulgação, as bibliotecas tinham também o poder de controlar os valores e as narrativas que legitimavam e asseguravam a manutenção do modelo sociopolítico que o regime liberal instaurara no país. Algo que, na verdade, continuou a acontecer durante a I República, o Estado Novo e o pós 25 de Abril, embora ao serviço de projetos políticos distintos.
Assim sendo, o n.º 6 da revista TRANSLOCAL. Culturas Contemporâneas Locais e Urbanas, tendo “Bibliotecas” como tema de capa, acolherá com interesse propostas de ensaios escritos e artigos (entre 2500 e 5000 palavras), ensaios visuais (até 5 imagens + texto complementar, entre 500 e 1000 palavras), e recensões críticas (entre 1000/2000 palavras), que, ocupando-se de questões relacionadas com o tema “Bibliotecas” - aqui entendido em sentido literal, mas também em sentido metafórico -, abordem (não exclusivamente) tópicos como:
-
as artes plásticas, o cinema, a literatura como bibliotecas;
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a biblioteca e o seu nomos (a sua lei): liberdades, libertinagens, censuras e/ou interditos;
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bibliotecários/as e leitores/as extraordinários/as;
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bibliotecas, acessibilidades e políticas de promoção da leitura;
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bibliotecas de artistas, de autores, de figuras públicas destacadas e de instituições;
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bibliotecas históricas, míticas e ficcionais;
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bibliotecas, materialidades e tecnologias do livro;
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imaginação e edificação de bibliotecas: o passado, o presente e o futuro;
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o livro de artista: questionação/reinvenção da biblioteca contemporânea;
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o papel das bibliotecas enquanto lugares de saber-poder na cidade e no mundo contemporâneos: desafios e oportunidades; …
As propostas para publicação (texto completo + eventuais imagens) poderão ser redigidas em português, inglês ou espanhol e deverão ser enviadas para o email da revista (translocal.revista@mail.uma.pt) até 31.01.2025, fazendo-se acompanhar, em documento autónomo, de:
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um resumo do texto (até 200 palavras), em duas línguas, sendo que uma delas deverá ser o inglês;
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nome do(s) autor(es) e uma breve nota curricular (até 100 palavras).
Seguindo os critérios internacionais de dupla avaliação cega por pares, as propostas submetidas serão validadas ou recusadas, tendo em consideração os seguintes critérios: contributo para a reflexão em torno do tema de capa do n.º 6 da TRANSLOCAL; rigor científico e sustentação argumentativa atualizada; qualidade de expressão escrita; respeito pelas normas de edição adotadas pela revista e que se encontram disponíveis aqui.
Até 15.04.2025, a coordenação da revista informará os autores das propostas que forem aceites e, após a conclusão do processo de revisões finais e paginação, o n.º 6 da TRANSLOCAL será publicada no segundo semestre de 2025.
Referências bibliográficas:
AAVV (1983), "A leitura pública em Portugal - Manifesto", Cadernos de Biblioteconomia, Arquivística e Documentação, n.º1/1983, Lisboa: Associação Portuguesa de Bibliotecários Arquivistas e Documentalistas.
BORGES, Jorge Luis (2004), “La biblioteca de Babel”, Ficciones, Madrid: Alianza Editorial, pp. 86-99.
BORGES, Jorge Luis (2008), Biblioteca personal, Madrid: Alianza Editorial.
COUTINHO, Manuel Carvalho (2024), A Biblioteca. Uma segunda casa, Lisboa: FFMS.
ECO, Umberto (s.d.), O nome da rosa, trad. Maria Celeste Pinto, 3.ª ed., Lisboa: Difel.
ECO, Umberto, 2002, A biblioteca, trad. Maria Luísa de Freitas, Lisboa: Difel.
MANGUEL, Alberto (2018), Embalando a minha biblioteca. Uma elegia e dez divagações, trad. Rita Almeida Simões, Lisboa: Tinta-da-china.
PINTO, Maria de Fatima Machado Martins (2017), Bibliotecas populares em Portugal: práticas e representações. Esboçar de uma missão (1870-1930), tese de doutoramento, Lisboa: IE-UL.
ROBERTS, Geoffrey (2023), A Biblioteca de Estaline. Um ditador e os seus livros, trad. Frederico Pedreira, Lisboa: Zigurate.
VALE, Paulo Pires do, ed. (2012), Tarefas Infinitas. Quando a arte e o livro de ilimitam. Caderno de Exposição, Lisboa: FCG/Museu Calouste Gulbenkian e Biblioteca de Arte.



