Da nossa ontologia faz parte o corpo. Não somos em parte corpo, mas em tudo corpo (Ihde, 2002). No sentir, no pensar, na ação. Talvez esta condição nos diferencie de outros modos do ser, designadamente do orgânico (o ser animal, o vegetal), dotados de corpo, mas não de uma necessidade tão premente do habitar, da relação com o lugar. Somos ser-aí (Dasein, Heidegger, 1927) e a nossa ontologia é relacional. O corpo protege-se, o corpo (des)fixa-se em permanência, o corpo move-se, lavrando o território percorrido, ao mesmo tempo que traçando uma geografia interior. E-motion (Bruno, 2007) – emoção e movimento – dita o tom duplamente dinâmico da nossa historiografia. Dir-se-á que a génese da cidade (Mumford, 1961) remonta ao imperativo da proteção e da sobrevivência do corpo, função a que se junta a vocação do mito e do décor (função-mito-décor) (Pimenta, 1989). A cidade-abrigo, a cidade-templo, a cidade-jardim. Num só lugar acomodam-se (ou inquietam-se) muitos sentimentos. O medo (Bauman, 1989, 1999; Kovadloff, 2004), o belo (Han, 2016; Kant, 1790), a natureza-paisagem (Cauquelin, 1989; Simmel, 1913), o princípio de felicidade ou o inter-esse (Arendt, 2001/1968). E tantos outros. Mas também múltiplos () (Perniola, 1993) sentidos. O corpo transforma-se em (não)lugar sentiente. Instável nos seus (des)limites, miscigenado com todo o tipo de dispositivos tecnológicos, o pós-corpo interage (perguntamos, ainda ou mais do que nunca?) com a arquitetura material-virtual, com as mediascapes (McQuire, 2008) plantadas no espaço percorrido, imerge na humidade, na promiscuidade dos odores, na orquestração caótica de tonalidades e de paisagens acústicas, deixa-se conduzir pela experiência háptica e cinemática (Friedberg, 2002) e ainda pelo “aroma do tempo” (Han, 2016).

Será hoje a cidade um significante sem significado ou uma pura produção imaginária (Domingues, 2010)? O seu “possível lateral” é talvez, ainda, um excesso. A luminosidade perene invisibiliza os objetos, os detalhes, e ameaça a visão das paisagens celestes. A polifonia de timbres e a variabilidade de frequências tanto inspira criações artísticas e acústicas (veja-se o caso da música concreta), como coloniza o tempo interior. Mais recentemente, o corpo contraiu-se de forma radical, e de um modo especial nos espaços urbanos, fechando-se intra-muros e inibindo-se do tocar, do cheirar, do respirar, da interação dialógica. As metapaisagens e as extensões tecnológicas do sentir tornaram-se inter-trans-lugares menos arriscados e mais convidativos enquanto formas comunicativas do habitar. Assistimos ao começo do fim da experiência urbana (Felice, 2012)? De que modo a organicidade e as paisagens pós-urbanas resistem ainda? Aguarda-nos um cântico surdo, lamentando a morte do corpo-cidade sentiente? Se a “fuga” à natureza motivou originariamente o edificado da cidade, ao mesmo tempo que o seu resgate, sob o modo de uma ideia híbrida que encerra tanto a harmonia na sua forma utópica, como a visão aterradora de um universo indomável e pré-humano, inquieta-nos hoje a (im)possibilidade do corpo-lugar e o seu “cumprir-se no devir” (Henri, 2001).

Arriscando temperar esta chamada com um apelo a uma visão organicista da (pós)cidade, as editoras convidam-na(o) a escrever sobre a urgência do re(sentir) o (pós)corpo-(pós)lugar, não esquecendo o odor das temporalidades e dos percursos, as paisagens cinestésicas, os desarranjos (in) visíveis do território sobre o qual se distende o “corpo-sem-órgãos” (Deleuze & Guattari, 1972, 1980), o ser próprio imiscuído com o do lugar vivido.

Tomando o dodecafonismo como referência que inspira um certo arrojo que aqui procuramos imprimir, desejaríamos aplanar o grau da visão, dominante na nossa cultura, seriando-o numa escala equitativa (embora rica de infinita diversidade) de sentidos, reclamando para cada registo sensorial – que artificialmente confundimos (com excessiva preocupação de discernibilidade) com o olfato, a audição, o tato – uma mesma exigência e gradação tónica, inextricável no seu conjunto. O debate sobre a significância dos sentidos na experiência urbana precisa dos contributos dos Estudos Culturais, da Comunicação em geral, cruzando fronteiras disciplinares, abordagens metodológicas e geografias, de forma a (re)constituir a concretude dessa experiência e as condições que a alimentam e tornam possível.

Neste número da Revista Lusófona de Estudos Culturais /Lusophone Journal of Cultural Studies, serão bem acolhidas, entre outras, propostas que visem tratar, de pontos de vistas e metodologias distintas, os seguintes temas (entre outros):

  • A cidade-natureza

  • A cidade dos corpos

  • A cidade vivida

  • A cidade-fluxo

  • A cidade-luz

  • A cidade cinemática

  • A cidade ciborgue

  • A cidade dos objetos

  • A cidade-performance

  • A pele da cidade

  • A (pós) cidade

  • A cidade sentiente

  • A cidade sonante

  • A cidade polifónica

  • A cidade podre

Língua

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Datas importantes

Data-limite de submissão: 31 de janeiro de 2021
Notificação das decisões de aceitação: 22 de março de 2021
Data limite para envio da versão final traduzida: 30 de abril de 2021
Data de publicação da revista: junho de 2021

Edição e submissão

Revista Lusófona de Estudos Culturais /Lusophone Journal of Cultural Studies é uma revista académica de acesso livre, funcionando de acordo com exigentes padrões do sistema de revisão de pares e opera num processo de dupla revisão cega. Cada trabalho submetido será distribuído a dois revisores previamente convidados a avaliá-lo, de acordo com a qualidade académica, originalidade e relevância para os objetivos e âmbito da temática desta edição da revista.

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